sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Consumindo a si mesmo


 
"Chega de perder o sono por causa de chatices corriqueiras. O segredo para a felicidade é evitar culpas e cobranças."
 
Existe uma ordem mundial contra o consumismo. É dito que ninguém é feliz pelo que compra, e sim pelo que é. Concordo, ainda mais quando se trata de exageros: gente comprando o que não pode pagar para tentar resolver carências que não consegue suprir. Porém, em vez de avaliar a questão pelo ângulo material, proponho pensarmos no que ela tem de existencial. A meu ver, o que precisamos evitar, mesmo, é o consumir-se – esse, sim, hábito danoso, pois abala diretamente nossa saúde, nosso estado de ânimo e as pessoas que nos rodeiam.
Muitos não percebem, mas se consomem por qualquer chatice corriqueira. A cada 24 horas, somos afetados pelo chuveiro que está pingando, o vizinho que reclamou do jeito que estacionamos o carro, a chuva bem na hora de sair para uma caminhada, o namorado que não retornou a ligação. Há quem abrace o papel de vítima e dê o dia como perdido por causa desse tipo de aborrecimento – que, diga-se, não acontece só conosco. Sejamos justas: por acaso temos controle sobre chuveiros, meteorologia, vizinhos, namorados? Não temos controle sobre nada. Podemos controlar um pouquinho a nós mesmos, e olhe lá.
O mundo não muda porque a gente quer, e sim porque o tornamos melhor por meio de pequenas atitudes. Uma delas é comprometer-se mais com a alegria do que com a ranzinzice. Para aliviar o cotidiano, convém relativizar as pequenas incomodações e se concentrar no que importa pra valer. Tendo calma e bom-senso, conseguimos lidar com imprevistos e rir das situações xaropes em que nos vemos metidos. Tudo compõe nossa história de vida, até as imperfeições – as alheias e as nossas.
Em dias muito ruins, aguardo o sol se pôr, abro um vinho e comemoro o fato de que a noite chegou: as encrencas terminaram (por hoje). Assim como há aqueles que nunca dormem brigados com seu amor, também não levo minha briga comigo mesma pra cama. Quando sinto que comecei a me autocastigar com culpas e cobranças, penso: "Dei o máximo de mim ao que me propus fazer – se não deu certo, paciência, todos nós temos nossos limites". Aí, desligo o abajur e zzzzzzzzzz. Amanhã é outro dia.
Não foi preciso ir à Índia nem o Tibet para atingir esse zen budismo – e tampouco é um zen budismo de farmácia. A resposta talvez esteja em muitos aniversários acumulados. De repente chega-se numa idade em que não faz mais sentido arrastar correntes e se desperdiçar com o que é improdutivo. Sendo assim, o desapego revela-se um caminho espiritual e prático ao mesmo tempo. Troca-se metas irreais por objetivos mais fáceis de atingir, troca-se o espalhafatoso pelo discreto, troca-se o exibicionismo social pelo bem-estar pessoal. Em nada isso nos reduz, ao contrário: quem é verdadeiramente grande aprende a valorizar o que é belo, simples e profundo. O resto é excesso de ocupação e de agito nos forçando a gastar energia desnecessária. A felicidade pode estar, sim, no consumo moderado de prazeres particulares: ingressos de cinema, livros, happy hours com as amigas, flores para a casa, viagens, produtos de beleza, terapia, tudo que seja investimento em descoberta e autoestima. Já consumir-se com atrasos, bobeadas e encrencas é levar a sério demais o que não tem tanta importância. E pior: envelhece.
 
(Martha Medeiros)